"Estudo para Rear Window" , 2011-2014
 Exposição/instalação "Rear Window" na Galeria Suspensa, Lisboa, 2018 | © Francisca Veiga e Imagerie - Casa de Imagens

REAR WINDOW
“Mind if I use that portable keyhole?” pergunta Stella a Jeff, no filme Rear Window (1954) de Alfred Hitchcock, olhando para a câmara fotográfica que este tem na mão. É precisamente desta ideia um tanto voyeurista, de possibilidade de olhar sem ser visto e de aceder ao que não conseguimos ver na totalidade, que surge Rear Window, exposição fotográfica dos artistas visuais Magda Fernandes e José Domingos.
Um quarto no 3º andar de um prédio em Campo de Ourique, Lisboa - o quarto deles- é transformado em dispositivo fotográfico, uma câmara pinhole onde a cidade se projecta invertida na parede. As imagens possíveis são determinadas pelas condições naturais de iluminação e pela brecha (pinhole e keyhole simultaneamente) que deixa passar a luz e com ela a própria imagem. O tempo longo e a penumbra exigidos na impressão directa constroem uma relação de intimidade entre os fotógrafos e a imaterialidade das imagens projectadas, que fixam em fragmentos. Num exercício de confinamento partilhado, a imobilidade da cidade é registada por contacto directo com a superfície fotossensível - o negativo da cidade.
A intrusão do espaço colectivo no espaço íntimo faz-se também na forma como se apresenta esta exposição, um díptico simétrico com as imagens em negativo e em positivo, permitindo ao espectador uma relação de intimidade, não só com a imagem mas também com a visibilidade dos próprios processos, elemento central do trabalho de Magda Fernandes e José Domingos.
As imagens propõem uma espécie de jogo nemésico em que o espectador é convidado a um acto voyeurista de decifração. A imagem devolvida ao interior do quarto é a visão fantasmática de uma cidade, onde a paisagem urbana contrasta com a ausência absoluta da figura humana – apagada pelos longos tempos de exposição que a fotografia pinhole exige. O exterior invade o espaço íntimo do quarto, sem a mediação da lente, como imagem espontânea que se inscreve no papel através de um gesto partilhado pelos artistas, constrói-se aliás neste gesto paradoxal, partilhado e quase coreografado, que questiona a prática fotográfica como exercício individual.
Sofia Berberan
“É na escuridão que se consegue ver melhor.”
A arquitetura tem como função construir o lugar para os Homens. O lugar, como Heidegger define, de local onde o Homem se reconhece a si próprio. Os lugares tencionam ser pensados de forma a criar modos de estar e de viver. O que eu sou aqui nesta galeria, não é o mesmo que sou numa discoteca, ou o mesmo que sou num museu, ou o mesmo que sou em minha casa. Nem o que eu sou em minha casa é o mesmo que eu sou na casa de um amigo ou de um familiar. No entanto, inconscientemente e devido ao nosso instinto animal, procuramos lugares onde nos sintamos mais acolhidos e são esses os lugares onde queremos viver.
“O papel privilegiado da casa não consiste em ser o fim da atividade humana, mas em ser a sua condição e, nesse sentido, o seu começo. O recolhimento necessário para que a natureza possa ser representada e trabalhada, para que se manifeste apenas como mundo, realiza-se como casa. O homem mantém-se no mundo como vindo para ele a partir de um domínio privado, de um «em sua casa», para onde se pode retirar em qualquer altura.”1.
O Homem existe enquanto “Eu” no espaço que identifica como casa. É nele que permite a si reconhecer-se na totalidade e aos outros. Mas este lugar de reconhecimento do homem existe em contraponto com os outros lugares que habita e aos quais não reconhece como casa, mas reconhece como algo no qual constrói personagens. Nesta galeria hoje, eu sou o arquiteto que partilha convosco o que acredita. Numa discoteca eu sou outra coisa diferente. Mas no fim eu só consigo ser “Eu”, inteiro, no íntimo da minha casa.
“O isolamento da casa não suscita magicamente, não provoca quimicamente o recolhimento, a subjetividade humana. Há que inverter os termos: o recolhimento, obra de separação, concretiza-se como existência económica. Porque o Eu existe recolhendo-se, refugiando-se empiricamente na casa. O edifício só ganha a significação de morada a partir desse recolhimento. A interioridade, realizada concretamente pela casa, a passagem a acto – a energia – do recolhimento através da morada, abre novas possibilidades que a possibilidade do recolhimento não continha analiticamente, mas que essenciais à sua energia, só se manifestam quando ela se manifesta.”2
A arquitetura tem como função permitir ao Homem a existência desses lugares, para que ele se identifique a si e ao mundo em que habita. Os arquitetos constroem os territórios dos Homens. E os Homens são os lugares que vivem. Desde o café na esquina da rua onde moramos, ao museu que visitamos em viagem, da casa onde passámos férias em criança, ao bairro onde vivemos, tudo cria em nós hábitos, rotinas, formas de viver e acima de tudo memórias que nos definem como “Eu” inteiro, e que apenas reconhecemos na intimidade das nossas casas. É por isso que o lugar que habitamos é também ele uma memória dos lugares que vivemos. A casa é um cenário das nossas vidas, um coletor de memórias e uma janela de paisagens daquilo que somos.
Podemos pensar que ninguém gostaria de viver numa casa com vista para um cemitério. Mas por vezes, pode não ser assim. Um jovem que procure uma primeira casa para viver sozinho, que durante a sua infância tenha vivido numa casa com vista para um cemitério, pode gostar de viver numa casa nova, com vista para o cemitério. E a razão de tal preferência pode não estar relacionada com o cemitério, mas com as memórias que este lugar lhe traz. O Pedro, um amigo, vivia numa casa com vista para o cemitério do Alto de São João, em Lisboa e um dos momentos que mais gostava de recordar naquela casa, era o dia de todos os santos, em que à noite brilhava à luz das velas, que se acendiam por todo o cemitério.
Também existe quem goste de viver em casas com grandes janelas de vidro. Mas neste caso os cenários que as envolvem, normalmente não implicam o confronto próximo com um exterior desconhecido. O exemplo da residência Farnsworth, de Mies van der Rohe, que é uma referência nas escolas de arquitetura. Como objeto é esteticamente interessante, mas para além de o acolhimento lhe ser oferecido pela paisagem que a envolve, o seu objetivo não foi cumprido como casa, razão pela qual Farnsworth a considerava inabitável e apresentou um processo judicial contra o arquiteto.
Depois existem também aquelas pessoas a quem lhes é indiferente a vista, no sentido em que preferem criar elas as janelas das suas casas e os cenários que habitam. Há quem encontre o seu lugar numa casa numas águas furtadas, com pequenos vãos, apenas com vista de céu. Ou quem se sinta abrigado em casas fechadas por cortinas que encerram o exterior. Normalmente estas pessoas procuram outras janelas, não as com vista do local que envolve a casa. Nestes momentos, ou quando estas não são suficientes, procuram vistas dos lugares que as envolvem a si e às suas memórias. Cenários criados a partir de pinturas, fotografias, desenhos, objetos, que lhes recordam momentos, lugares e as transportam para o lugar onde se identificam a si e ao mundo que as rodeia.
Rear Window é uma exposição que coloca precisamente esta relação do exterior que envolve o homem, em que ele habita enquanto personagem e onde cria memórias, com uma janela fechada que projeta essa memória, no lugar em que se sente protegido e se reconhece. O processo deste trabalho e a forma como é realizado demonstra um diferente tipo de relação que a janela, apesar de fechada nos permite ter com o exterior. Este mecanismo acaba por como uma câmara, ser o reflexo de uma memória que nos envolve e que por vezes nem damos importância. Olhamos de uma forma diferente o quadro que a janela nos emoldura, quando ele nos entra em nossa casa. Pedaços de pormenores da vista de uma janela das traseiras que adquirem uma nova leitura, na penumbra da sala e na intimidade da casa.
A fotografia, como a conhecemos normalmente hoje em dia, fixa o instante. Aqui, o tempo longo de exposição torna a fotografia num conjunto de instantes, de uma realidade com tempo. Aqui, o tempo longo de exposição torna a fotografia numa atmosfera. A atmosfera que se cria como quando se olha pela janela, agora transformada no espaço habitado. São estas atmosferas que representam a arquitetura – espaços da nossa memória reinventada nos gestos do quotidiano, ou em momentos excecionais.
 
A memória da fotografia como a conhecemos normalmente hoje em dia, é muito mais uma atualização de sensações vividas do que uma memória dos momentos retratados. No entanto, neste trabalho, em que os fotógrafos se propõem a usar o quarto como câmara fotográfica, o processo torna-se ele por si só uma memória de um momento, com um tempo próprio e específico, que é visível no resultado que se obtém. É por isso, que o trabalho da Magda e do Domingos consegue, retratar o verdadeiro sentido da arquitetura. Isto porque existe um tempo, que torna o instante, num momento, como num filme. 
Rear Window é a escuridão que nos permite ver melhor os lugares que habitamos, e ao homem reconhecer-se no mundo em que habita.
João Pedro Cavaco
1 In Emmanuel Levinas, ‘A Morada’, in Totalidade e Infinito (Lisboa: Edições 70, 1980), pp. 135–156.
2 Ibid.
Back to Top